
A Ascensão, o Delírio e a Queda da Lobotomia
Subtítulo: Da promessa de cura à máquina de silenciar consciências
“A medicina erra como um Deus bêbado: convencido de que salva, cego ao que destrói.”

1. Antes do corte: a psiquiatria no limite
Nos anos 1930, a psiquiatria caminhava como um cão sem dentes: institucionalizada, temida e desprovida de recursos reais. Os sanatórios estavam superlotados. As pessoas com quadros graves de psicose, depressão profunda, alucinações persistentes, ansiedade incapacitante, convulsões não tratáveis — todas eram confinadas em alas sob vigilância permanente.
O sofrimento era visível e constante. Médicos e famílias desesperavam-se diante de um mesmo quadro: pacientes agressivos, catatônicos, suicidas, incontroláveis.
Sem psicofármacos, sem terapia eficaz, o impulso por “fazer algo” tornou-se maior que o critério.
É nesse vácuo que a lobotomia surgiria. Não como uma aberração isolada, mas como resposta de um sistema que já não suportava a sua própria impotência.

2. Moniz: o médico que cortou conexões para “curar”
O neurologista português António Egas Moniz era um homem respeitado, pragmático, ambicioso. Ao observar experimentos feitos por John Fulton com chimpanzés que, após lesões no lobo frontal, tornavam-se mais calmos, teve uma ideia que atravessaria a ética e mudaria o rumo da psiquiatria: cortar as ligações dos lobos frontais dos humanos.
Assim, em 1935, Moniz realizou as primeiras leucotomias: utilizando álcool absoluto ou instrumentos especiais, destruía cirurgicamente parte da substância branca do lobo frontal, visando desorganizar circuitos considerados “patológicos”.
Os primeiros resultados — grosseiramente positivos — impulsionaram um frenesi. Em 1949, Moniz receberia o Prêmio Nobel de Medicina, consolidando a lobotomia como um marco da psiquiatria moderna.

3. A explosão nos EUA: Walter Freeman e o picador de gelo
Nos Estados Unidos, o médico Walter Freeman transformaria a lobotomia em espetáculo e rotina. Junto ao neurocirurgião James Watts, iniciou as primeiras leucotomias no estilo Moniz, mas logo propôs uma versão mais rápida e “acessível”: a lobotomia transorbital.
Com um picador de gelo introduzido acima do globo ocular e um martelo de aço cirúrgico, Freeman realizava o corte do feixe tálamo-frontal. Tudo sem abrir o crânio.
Era barato, era rápido, era brutal. E era aclamado.
Chegou a realizar mais de 3.500 lobotomias — inclusive em crianças. Viajou pelos EUA em seu “lobotomóvel”. Apresentava o procedimento em auditórios. Era chamado de gênio, visionário, salvador.
As estatísticas de sucesso, claro, eram fabricadas.
4. A promessa de alívio
Para as famílias e instituições, a lobotomia oferecia algo que a medicina não entregava até então: controle.
Um parente agressivo se tornava passivo. Um paciente suicida se tornava calado. Uma mulher “histérica” se tornava domesticada.
Era uma forma de matar sem matar. Um assassinato funcional — ou, como diziam, uma “cura cirúrgica”.
Muitos médicos honestamente acreditavam. Outros, simplesmente, preferiam não ver.

5. Os primeiros sinais do horror
Com o tempo, começaram a surgir os casos incômodos. Pacientes que saíam da cirurgia sem memória. Outros que nunca mais falaram. Mortes. Infecções. Pessoas que antes gritavam e agora apenas sorriam… de forma vazia.
Internamente, nos hospitais, começaram os sussurros. Os relatórios eram ignorados. Freeman continuava.
A imprensa começou a desconfiar. O público começou a questionar. A dúvida nasceu.

6. As primeiras vozes contra
Médicos dissidentes começaram a alertar: algo estava profundamente errado. Neurocientistas apontavam para a destruição irreversível das funções corticais. Psiquiatras humanistas exigiam investigação. Alguns hospitais suspenderam o procedimento.
Em 1967, após a morte de uma paciente durante sua terceira lobotomia, Freeman perdeu sua licença.
O colapso havia começado.
Mas os danos já estavam feitos.
As Ruínas da Consciência: O que a lobotomia fazia com o cérebro humano
Subtítulo: Anatomia do silêncio, neuroquímica do vazio, e o apagamento da mente como método terapêutico.

7. O momento do corte: entre a carne e o invisível
Quando o orbitoclasto — instrumento semelhante a um picador de gelo — atravessava a órbita ocular e perfurava a placa óssea, ele não apenas violava um limite físico. Atravessava um limiar simbólico: o da soberania da consciência.
O movimento de varredura destrutiva que Freeman realizava com as mãos firmes, mas sem qualquer precisão cirúrgica real, tinha um alvo funcional: o feixe de fibras que conecta o córtex pré-frontal a áreas profundas do cérebro — em especial, o tálamo, a amígdala, o núcleo caudado e o hipotálamo.
Era ali, entre os lóbulos frontais e o sistema límbico, que se localizava a encruzilhada da emoção e do raciocínio. O que se cortava com o ferro não era apenas tecido — era a estrutura que sustentava o Eu.

8. As estruturas anatômicas afetadas
O corte lesava principalmente:
- As fibras da radiação tálamo-frontal, especialmente do núcleo dorsomedial do tálamo, que envia informações para o córtex pré-frontal
- As projeções do giro do cíngulo anterior, responsáveis pela modulação emocional e motivacional
- As conexões orbitofrontais e dorsolaterais, relacionadas ao julgamento social, controle inibitório e planejamento
- As fibras que comunicam o hipotálamo com o córtex — eixo neuroendócrino da resposta emocional
A interrupção dessas vias levava à isolação funcional do lobo frontal.

9. O colapso neuroquímico
Quando essas vias eram destruídas, uma sequência de falhas químicas se seguia:
- A dopamina — neurotransmissor da motivação e antecipação de recompensa — deixava de ser modulada pelo córtex. O paciente não desejava mais.
- A serotonina, responsável pela regulação do humor e estabilidade emocional, perdia seus receptores principais.
- O glutamato, excitador principal das vias tálamo-corticais, era silenciado.
- A norepinefrina, ligada à vigília e atenção, tornava-se ineficaz.
O cérebro entrava num estado de entropia afetiva e cognitiva.
10. O novo corpo: apatia, infantilização, docilidade
Após a lobotomia, os pacientes frequentemente apresentavam:
- Apatia profunda
- Perda da iniciativa
- Comportamentos desinibidos, simplórios ou infantis
- Riso fácil, choro imotivado, expressividade emocional desconectada da realidade
- Obediência automática, ausência de crítica, olhar vazio
Era a morte da identidade. Não uma morte biológica, mas uma morte da complexidade interna.

11. Estudos de caso: nomes, rostos, tragédias
- Rosemary Kennedy: irmã de JFK, lobotomizada aos 23 anos, ficou incapacitada para o resto da vida.
- Howard Dully: lobotomizado aos 12 anos por recomendação da madrasta. Viveu décadas tentando compreender o que lhe foi tirado.
- Milhares de pacientes anônimos: apagados de si mesmos, institucionalizados, rotulados como “curados”.
Essas histórias ecoam o que não pode ser medido por gráficos: o que se perdeu foi a alma subjetiva de seres humanos.
12. Efeitos colaterais ignorados
Mesmo diante de:
- Hemorragias cerebrais
- Infecções
- Comas e mortes
- Personalidades destruídas
… a lobotomia ainda era celebrada. Porque ela calava. E o silêncio era confundido com paz.
13. A falsa paz: o paciente ideal para um mundo doente
A medicina da época queria corpos obedientes. Famílias queriam sossego. Hospitais queriam leitos vagos.
A lobotomia entregava todos esses desejos. O paciente tornava-se útil, dócil, “reinserível”.
Mas ele já não estava mais lá.

14. Hoje: métodos diferentes, perguntas semelhantes?
Vivemos hoje sob intervenções mais sutis — mas ainda perigosamente silenciosas.
- Medicamentos que amortecem
- Diagnósticos que rotulam
- Neurotecnologias que prometem correção
A pergunta permanece:
Estamos tratando? Ou apenas modelando comportamentos para caberem em uma norma?
15. Referências essenciais
- Kandel, E. R. et al. (2014). Princípios de Neurociência. AMGH.
- Blumenfeld, H. (2010). Neuroanatomia através de casos clínicos. Guanabara Koogan.
- Freeman, W., & Watts, J. (1942). Psychosurgery: Intelligence, Emotion and Social Behavior Following Prefrontal Lobotomy.
- Scull, A. (2015). Madness in Civilization: A Cultural History of Insanity. Princeton University Press.
- Braslow, J. (1997). Mental Ills and Bodily Cures: Psychiatric Treatment in the First Half of the Twentieth Century.
- Valenstein, E. (1986). Great and Desperate Cures: The Rise and Decline of Psychosurgery and Other Radical Treatments for Mental Illness.
Encerramento
Entre o bisturi e a docilidade, a medicina escolheu o silêncio.
Cabe a nós escutá-lo — e não repeti-lo.